sábado, 4 de abril de 2009

SER DEFICIENTE

"Amor e humanização em saúde no atendimento multiprofissional"



"Cultura e inclusão"



SER DEFICIENTE

Hoje resolvi pôr para fora algumas questões que abarcam dois universos distintos: o lado psicológico de ser deficiente e um pouco da visão crítica social que acabamos por adquirir frente a tanta bobagem que se coloca sobre o que é ser deficiente.

Aproveito a ocasião para parabenizar o trabalho desenvolvido na área da inclusão, que constitui na sociabilização dos deficientes (portadores de necessidades especiais) todas as organizações que trabalham pela educação dos portadores de deficiência do país.

Sei que existem esforços maravilhosos para incluir deficientes na sociedade, mas só acho que no país não há, sinceramente, nenhum estado que mereça destaque nesta área.

Todos os trabalhos são extremamente precários e as avaliações estão sendo feitas de forma massificada, ou seja, a premiação emerge pelo menos pior e não por um bom trabalho.

Existem recursos e investimentos, mas falta pesquisa, profissionais habilitados, enfim gente que viva a realidade das deficiências além da área administrativa e acadêmica.

Por exemplo: poucos sabem que os, cegos, enxergam o mundo passando a mão. Mão boba é a do ceguinho. Melhor dizendo, a ponta do dedo. Só que não podem passar a mão em todos os lugares, o que seria extremamente contra-indicado. Mas as pessoas não têm noção de como é não enxergar, ou, pior ainda, como é enxergar sem enxergar.

Hoje mesmo uma vizinha, quando viu o ceguinho ao portão, passou e buzinou.
Ele levantou o braço e acenou gritando. O pessoal deu risada e indagou quem era a mulher do carro. Respondeu: Sei lá. Acenei para não deixar a pessoa sentindo-se uma idiota, rídicula. Aliás, é um tal de cumprimentar o cego com balançar de cabeça, aperto de mão, sorriso à distância, um oi, um olá rápido, e o cego que se vire para descobrir quem é ou para ter pontaria para acertar o cumprimento de mão. E a pérola "adivinha quem é?" Jóia mímica para cegos. Afinal alem de tudo, os cegos teem de virar adivinhos ou profetas.

E a questão básica de tudo é a falta de informação sobre o que são as deficiências, sua realidade e potencialidade. Quer ver uma questão interessante: como estão nossos atletas para-olímpicos? Alguém sabe? Na Olimpíada passada batemos os recordes que os atletas convencionais não conseguiram com um número muito mais expressivo de medalhas. E isto não é noticiado em veiculo de comunicação nenhum. Na mesma proporção que não há informações sobre os deficientes na mídia, ocorre com nossa educação que, embora reconheça a existência e os direitos dos deficientes, não sabe ainda como lidar com os mesmos.

Isso acaba por ficar generalizado em todas as partes da sociedade. Como lidar com uma realidade estranha e desconhecida?

E não adianta os, deficientes, esperar boa vontade da sociedade ou mudanças plausíveis e concretas. Não há parâmetros coerentes para uma mudança no sistema por uma série de fatores estruturais, sendo a principal falha a de comunicação. Falta pesquisa, vivência, informação, educação... Enfim, o universo das deficiências é como o chupa-cabra ou o ET de Varginha. A coisa é feia demais para quererem tomar contato, e se aparecer, correm...

Aqui faço essa analogia por ver como é incômoda tal situação para inúmeras áreas da sociedade. E, particularmente, posso falar disso bem por já ter publicado uma das primeiras obras científicas do Brasil como professor falando sobre as “Dificuldades de Aprendizagem no Ensino Fundamental”", publicada pela Editora Loyola, de São Paulo, em 2001, e também por ter feito a coordenação de um curso de capacitação na área para educadores aprenderem a lidar com deficientes. Isso foi visto como um horror: deficientes ensinando professores a lidar com deficientes!
É o dia do juízo, a volta dos mortos vivos...

Também participei do I Simpósio: “Os Caminhos da Inclusão” realizado pela Apae de Salto/SP, um evento que visa trazer à tona discussões mais plausíveis acerca da realidade dos portadores de necessidades especiais (entre outros eventos de mesma natureza). Este evento surgiu a partir da necessidade trazida pelos próprios deficientes em assumir uma área de vivência, que é a inclusão pela educação. O discurso hoje existente é uma maravilha, contudo faltam elementos técnicos e vivenciais nas iniciativas para que a metodologia de inclusão dê bons resultados por só um pequeno detalhe: nesse processo não ouviram os deficientes para saber quais suas reais necessidades e potenciais. A educação inclusiva nasceu no meio acadêmico, da academia para a academia. Como diria meu caseiro: vixi, voith, joinha, joínha! Aff.

Como incluir na sociedade algo que é ignorado? Parece brincadeira, mas o tanto de comentários absurdos e pergunta besta que ouvimos diariamente merece destaque. E perguntam ao cego:
"Como você sabe que uma mulher é bonita?"
Responde ele, sempre pelo cheiro...
"Do perfume?"
Responde ele: "Não. Do sovaco".
Isso para não falar das pessoas que até tentam nos ajudar a atravessar uma rua, por exemplo. Tem muita gente solidária e com boa vontade, mas a falta de informação às vezes é tanta que acabam por nos prejudicar.
Outro dia estava um cego numa avenida esperando para atravessar. Muitos carros e ônibus.
Veio um moleque e falou: "Quer ajuda, tio ".
O cego respondeu que aceitava.
Ele pegou a bengala do cego e foi.
Andou uns dez passos e parou no meio da avenida, soltando a seguinte expressão: "Corre tio, senão o ônibus te pega!"...
Merda! Correr pra onde...
Ainda bem que existe o mito de que atropelar cego dá dez anos de azar.
Outro dia, também um cego andando no centro da cidade, um gentil senhor avisa o ceguinho, enquanto lá ia ele de bengala na mão cutucando o chão: "Meu filho, cuidado, pois tem fezes caninas por toda a calçada logo ali na frente."

Já ouviram falar da lei de Murphy? O gentil senhor sumiu.
Avenida de alta velocidade, sem semáforos.
Ele Não podia atravessar sem viva alma perto, deserta e lá vão eles.
Quem sabe a bengala deles os desvie do campo minado.
Um dia alguém inventa uma bengala com sensor ou radar para objetos anais não identificados.

Conto estas coisas que são triviais para mostrar o quanto estamos longe de uma sociedade igualitária. Sem informações e sem educação, como incluir? E veja que uso apenas o exemplo de atravessar uma rua ou de andar no passeio público. As pessoas não sabem como lidar com um deficiente. É como se eles fôssem alienígenas ou mutantes. O lado humano e natural da vida não lhes pertence.

Todo o sistema de educação no país, que atualmente tem como discurso a inclusão, ou seja, trazer o deficiente para uma sociabilização, é extremamente interessante, porém pouco prático. Questiono: será que realmente estamos prontos para lidar com o que é diferente, seja um deficiente, um negro, homossexual, gordo, estrangeiro, alienígena?

Cá eu admito que não. O Brasil é um dos países mais preconceituosos.
Temos arraigado o pior tipo de preconceito o velado.

Ninguém admite seu preconceito. Aliás, preconceituosos são os estrangeiros, de preferência os norte-americanos. Nós, da terra do samba, do futebol, do carnaval, país de Hebe Camargo, Pelé, Silvio Santos, Faustão, não tem nada disso, não.

Vivemos numa cultura extremamente massificada, em que toda a moda consiste em adotar padrões de igualdade, ou seja, imite os outros para ser alguém.

Quanto mais você imitar quem está na revista ou na televisão, mais interessante será. Isso valendo para vestuário, estético pessoal, linguagem, comportamento, até na postura de trabalho, pra não falar no gosto por arte. Adoro ver gente na segunda-feira repetindo o que viu na televisão no domingo, sem o menor critério. Mas, se passou na telinha domingo, é bom. É o que importa.

Citei o problema da massificação recorrente, pois a base do problema da inclusão dos deficientes na sociedade começa aí. Querem colocar em um sistema educacional massificado, na engrenagem uma peça que não se adequa por razões específicas, em especial a cognição diferenciada em cada tipo específico de deficiência. Um cego aprende de forma diferente de um surdo ou de uma pessoa com retardo mental. Mas os acadêmicos querem massificar, acreditando que tudo pode servir a todos. Estudos
avançados de neurociência, que hoje abarcam a percepção diferenciada associada à afetividade, mostram-nos a subjetividade de processos adaptativos psíquicos. Mas até agora pouquíssimos intelectuais atentaram para isso.

Algum idiota da área acadêmica resolveu, para diminuir o preconceito, mudar o nome de "deficiente" para "portador de necessidades especiais".
Grande! Lindo! E o preconceito, sumiu? Não.
Não é por que mudamos nomenclaturas que a postura das pessoas muda. Pelo contrário: isso só gera mais confusão. Mas tem de deixar a bobagem imperar. Veja só a confusão que virou termos de parar de chamar os negros de negros, mudando para afro-descendentes. E a zona que virou no país com relação às vagas universitárias para eles destinadas? E o preconceito, diminuiu?

Tudo isso deixou bem claro o quanto somos preconceituosos, pois até hoje ninguém admitiu isso claramente.

Mas o mesmo imbecil resolveu dar pitacos na área da educação dos deficientes e achou que os modelos educacionais não são eficientes, o que é um fato. Todavia, imaginaram que o ensino convencional, extremamente massificado, poderia ser o mesmo direcionado a um deficiente. E colocaram numa mesma sala de aula todos juntos, todas as deficiências e os alunos convencionais. Para piorar o quadro não há capacitação adequada dos professores. O estado fingindo que capacita, mas sem instrumental técnico adequado, sem base científica, sem pesquisa, sem vivência prática (só de revisão bibliográfica). E de repente lá está nosso herói, o professor numa sala de aula com 40 ou 50 crianças e, no meio delas, um hiper-ativo, três arruaceiros, um deficiente auditivo, um cego e uma com retardo mental leve. Parece brincadeira, mas já ouvimos este relato de uma professora da rede pública que nos procurou desesperada. Ela fez um pequeno curso de capacitação do estado, de vinte horas, que de verdade não preparava ninguém para nada.

Mostraram um filme lindo, tudo feito de cor-de-rosa. Vinte eternas horas bonitinhas, mas ordinárias.

Só a cabecinha...

Como pesquisador na área posso falar que não conheço nenhum curso de capacitação que leve um aspecto básico do ensino e aprendizagem que é a cognição. Cada tipo de deficiência tem uma forma de aprender específica, que necessitará ser lapidada de forma individual, de perto, pelo professor. Isso só ocorrerá mediante uma avaliação minuciosa que levantará qual a melhor forma para o indivíduo aprender. Assim mapeamos o tipo de percepção, a forma de elaboração afetiva e a elaboração racional de um deficiente e a sua forma dinâmica de ação na aprendizagem. Misturamos a análise de Carl Jung, neurociência atual, psicopedagogia, pedagogia e terapia ocupacional, buscando sempre propostas práticas de atuação.

Certa colega deficiente visual aqui de nossa cidade procurou uma universidade particular para aprender Pedagogia. Prestou o vestibular e foi aprovada.
Buscou, por ser deficiente, diretamente a coordenadora do curso, que é doutora em educação, mestra, especialista,...enfim haja títulos. Expôs seu problema abertamente e questionou se havia na instituição algum planejamento desenvolvido para auxiliar os deficientes. A coordenadora, além de rir na cara da aluna, simplesmente a tratou com o mais profundo descaso, ignorando todos os seus pedidos de apoio. Isso numa instituição particular. Se a universidade que forma pedagogos tem essa mentalidade, como está o resto?
Ao insistir com a coordenadora, levando à instituição idéias viáveis para a adaptação de deficientes, ainda ouviu: "Não temos culpa de você ser deficiente"... A cena, se não fosse trágica, lembraria o patrão do Dino, da Família Dinossauro (sim, aquele com boca enorme e dentes gigantes, prestes a devorar qualquer pedido).

Esta é a realidade de nosso país, cheio de leis e boas intenções, mas que de verdade não saem do papel. Quando vêm à tona são como o moleque nos ajudando a atravessar a rua: "Corre, senão o ônibus te pega"!

Do ponto de vista da psicologia profunda nos deparamos com uma estrutura, tanto no aspecto pessoal quanto no coletivo, que Carl Jung chamou de "sombra" - que é tudo aquilo que nós temos, porém não aceitamos. Para a sociedade o deficiente é uma sombra ambulante.

Embora existam, não os aceita. Sim, porque eles são diferentes, não se adequam ao modelo massificado de nosso quotidiano, tem vida própria, tem de se virar para sobreviver e dão trabalho.

Isso afrontando diariamente nossa mediocridade existencial. É como se esta instância da psique coletiva tomasse forma própria e autônoma e, para piorar tudo, exigisse seus direitos.

As deficiências afrontam nosso universo hedônico, perfeito esteticamente, igualitariamente loiro e de olhos azuis, maníaco e eufórico, consumista e cheio de moda. Eles não são, nem podem representar o mercado.
Sim, neste mundo siliconado, de curvas perfeitas, da geração "bunda music", dos sorrisos intermináveis, do virtual lúdico do faz-de-conta da cinderela; terra do nunca e do Peter pano;, não há espaço para o feio, para o desajeitado, para o gordo, negro, indígena, deficiente. E quem sabe um dia nos livremos deles por meio de gestações programadas geneticamente.
Já pensaram em um mundo sem Ray Charles, Steve Wonder, Jeff Healey, Machado de Assis, Hermeto Paschoal, Disney, Chaplin e tantos outros... Elimine-os! Deixe ficar somente o que é belo esteticamente, o que dança, o que ri em voz alta, o que é extrovertido.

Na prática, a temática das deficiências é algo difícil de encarar.

Quem quer ser deficiente ou encarar na família algo assim? Optamos por virarmos cegos, surdos e aleijados diante dessa realidade e assim fingimos que nada vemos, nada ouvimos e nada fazemos. E a sombra toma conta coletivamente, impondo-se quotidianamente.

Emerge, desta situação coletiva dois tipos básicos de comportamento visíveis na sociedade: rejeição e preconceito com uma total negação desta realidade; ou a super-proteção que acaba por coibir qualquer chance de crescimento real abafando.

Na rejeição, o deficiente é visto como um inimigo, algo alienígena que necessita ser combatido ou ignorado. A temática presente no desenho animado dos X-Men e a novela da Record, aquela chamada Mutantes, prende a atenção de nossos jovens e adolescentes por justamente tratar desta esfera psiquicamente. O poder dos minoritários e excluídos. Sim, os mutantes que necessitam ser eliminados, pois são aberrações.

Na esfera religiosa isto é bem notório. O tanto de igreja especializada em fazer milagre (ao menos tentar) de curar cegos, aleijados, surdos, colocando em suas cabeças que eles estão assim por obra diabólica ou castigo divino, o que piora em muito a auto-estima do deficiente é algo escandaloso. Aliás, evito entrar em certas igrejas neobusines pentecostais. Por isso, não tenho vocação para o milagre do dia. E onde estão tais milagres?

Já na super-proteção, a coisa vira do descaso e rejeição total a um abafamento de igual perigo. Na super-proteção coíbe-se o crescimento, não permitindo que o deficiente viva seu universo, suas limitações, suas capacidades. Com isso, ele não cresce.

As políticas assistencialistas patriarcais são um exemplo. Embora ajudem a subsistência, não estimulam o indivíduo a crescer. Pelo contrário, fomentam o sentimento de invalidez e de inutilidade, trazendo o discurso amplo: aposente-se. É a política do coitado, tadinho, pobrezinho...
Etnologicamente, o coitado é na verdade um ser que sofreu um coito, um enrabado! E coitadinho para cá, coitadinho para lá...

Quero fechar esta temática fazendo um paralelo deste arquétipo que, na área analítica, chamamos de "arquétipo do inválido", com nossa cultura brasileira. Gosto de ver o quanto nos colocamos na política da miséria.

Se observarmos todas as campanhas eleitorais veremos que elas visam exclusivamente o assistencialismo paternalista. Prometem pão vitaminado, asfalto, cesta básica, até bujão de gás eterno. Tudo em troca de um voto. Legal. Depois do voto, o coito!

Temos, instalada em nosso inconsciente cultural, uma política ampla de coitos e de coitados. Somos um país de terceiro mundo que insiste em ser do primeiro. Politicamente somos cegos, aleijados, surdos e retardados mentais. Massificados, nos vendemos à menor esmola, trocando nossa alma por migalhas. Depois nos masturbamos diante dos noticiários com queixo caído, baba no canto da boca, olhar de peixe morto, praguejando: "Nossa, outro escândalo! Político é tudo ladrão!"

Admirei ao ver na televisão o primeiro-ministro do Japão falando abertamente que admirava observar a alegria dos brasileiros que contentavam-se sempre com um terceiro lugar, referindo-se à maratona olímpica. Alegria de ser do terceiro mundo? O que é este contentamento descontente, qual meretriz em beira de cais ou em arredores do Dergo?

Lá vamos nós, de coito em coito, de rabo assado, mas felizes.

Sempre no estigma, se não pode, relaxe, aproveite e goze.
Como se todo estupro fosse coisa normal.
E no pensamento igrejistico, estuprada, não pode abortar, mas gerar mais uma aberração.
E assim, vamos na mentira da felicidade, de que só foi a cabecinha.

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